Existem cristãos
endemoninhados?

Esses pregadores da batalha espiritual defendem a prática de expulsar demônios de cristãos e isso como resultado de uma teologia distorcida. Segundo essa teologia, o homem seria um espírito que tem alma e habita um corpo. Isso é defendido por muitos líderes da Confissão Positiva, como Essek William Kenyon e Kenneth Hagin. Partindo desse falso conceito, afirmam que, na salvação, o Espírito Santo passa a habitar o espírito humano e os espíritos imundos “estão relegados à alma e ao corpo do cristão”.1 Outros citam ainda passagens bíblicas como “O mau espírito da parte de Deus, se apoderou de Saul” (1Sm 18.10) e fraseologia similar (1Sm 19.9); Judas Iscariotes (Lc 22.3) e Ananias e Safira (At 5.1-10). Essas três passagens são interpretadas por eles de maneira distorcida.
Uma das características das
seitas é reavaliar conceitos teológicos a fim de adaptá-los às suas crenças,
fugindo do padrão ortodoxo. À luz da Bíblia, o homem é um ser metafísico e
moral, feito à imagem e semelhança de Deus, constituído de corpo, alma e
espírito (Gn 1.26; 2.7; 1Ts 5.23). Alma e espírito são entidades imateriais,
distintas um do outro, embora inseparáveis. O corpo é o invólucro material da
alma e do espírito. O texto de Hebreus 4.12 fala da “divisão da alma, e do
espírito, e das juntas e medulas”. Isso se refere às três partes distintas da
constituição humana. A constituição bíblica do ser humano contraria o falso
conceito da presença dos demônios no corpo e na alma do cristão.
O argumento sobre o estado
espiritual e psicológico de Saul precisa ser analisado com muito cuidado. Há de
fato, quem afirme que ele ficou endemoninhado. Os que defendem essa linha de
pensamento sustentam que Deus deu permissão aos demônios para atormentarem
Saul, assim como permitiu ferir o patriarca Jó (1.12). Se isso puder ser
confirmado, deve-se levar em conta que Saul, nessa época, estava desviado. Deus
o havia rejeitado por causa de sua desobediência (1Sm 15.23). Além disso, o
texto bíblico não afirma que Saul ficava endemoninhado. É dito que o Espírito
Santo retirou-se dele e que “o assombrava um espírito mau da parte do Senhor”
(1Sm 16.14). Trata-se de um espírito da parte de Deus e não de Satanás. De
qualquer forma, é muito temerário usar tal passagem bíblica para fundamentar
uma doutrina dessa.
O exemplo de Judas Iscariotes é
inconsistente. A Bíblia revela, de fato, que Judas Iscariotes foi possesso, mas
é como disse Paulo Romeiro: “Dizer que ele foi um cristão é forçar demais o
texto bíblico, e nem foi essa a opnião do Senhor sobre ele”.2 O
Senhor Jesus disse que Judas Iscariotes era “um diabo” (Jo 6.70), e que não
estava limpo (Jo 13.10-11). O texto sagrado revela ainda que ele era ladrão (Jo
12.6).
A passagem de Ananias e Safira
não confima também essa doutrina, pois o texto sagrado afirma que Ananias e
Safira mentiram, e não que ficaram possessos ou endemoninhados. O acontecido é
que eles não vigiaram e por isso agiram sob influência de Satanás. Eles
mentiram ao Espírito Santo (At 5.3). Isso pode acontecer com um cristão
vacilante, e não é possessão maligna, por isso devemos orar e vigiar para não
cairmos em tentação. Disse Jesus: “O espírito está pronto, mas a carne é
fraca”, Mt 26.41.
O Senhor Jesus disse que todos
os espíritos demoníacos deixam o corpo da pessoa que se converte ao Evangelho
(Lc 11.24). O tal corpo fica varrido e adornado, obra do Espírito Santo (Lc 11.25).
A Bíblia ensina ainda que o corpo do cristão é templo do Espírito Santo (1Co
6.19) e que corpo, alma e espírito do cristão “pertencem a Deus” (1Co 6.20).
Nós temos promessas de Deus de que o maligno não os toca: “O que de Deus é
gerado conserva-se a si mesmo, e o maligno não lhe toca”, 1Jo 5.18. O
cristianismo baseia-se na Bíblia e não em experiências humanas contrárias às
Escrituras Sagradas.
Espíritos
Territoriais
Seus expositores fundamentam essa crença em experiências humanas, nos
relatos de missionários e não na Palavra de Deus. Peter Wagner, no capítulo
três do seu livro Espíritos territoriais, demonstra isso. Em
resumo, a doutrina consiste na crença de que Satanás designou seus
correligionários para cada país, região ou cidade. O Evangelho só pode
prosperar nesses lugares quando alguém, cheio do Espírito Santo, expulsar esses
espírito malignos.
Em decorrência disso, surgiu a necessidade de uma geografia
espiritual, daí um mapeamento espiritual. Os espíritos territoriais são
identificados por nomes que eles mesmos teriam revelado com suas respectivas
regiões que supostamente comandam.
O apóstolo Paulo diz que "o deus deste século cegou o
entendimento dos incrédulos" (2Co 4.4). Peter Wagner usa o mesmo método das
seitas no sentido de tirar conclusões em mera possibilidade. Ele julga ser
possível considerar o termo "incrédulo" como "territórios",
sendo "nações, estados, cidades, grupos culturais, tribos, estruturas
sociais" (pág. 72), e sobre essa falsa premissa constrói seu pensamento
doutrinário.
Ainda de maneira sutil, procura fundamentar sua ideia nas
palavras "príncipe do reino da Pérsia" (Dn 10.13) e "príncipe da
Grécia" (Dn
10.20) para justificar o mapeamento espiritual. O capítulo três da citada
obra apresenta até nomes desses supostos espíritos territoriais, os quais
teriam se revelado a si mesmos, como Tata Pembele, Guarda dos Antepassados,
Espíritos de Viagens, entre outros. Narai seria o espírito chefe na Tailândia.
Isso evidência que os defensores da crença dos espíritos territoriais creem na
mensagem demoníaca, pois aceitam os supostos nomes e funções que esses
espíritos dão a si mesmos. Isso é muito perigoso, pois Satanás é o pai da
mentira (Jo
8.44).
Não existe vínculo entre a doutrina do mapeamento
espiritual com a passagem de Daniel 10.13,20, pois o texto
sagrado trata de guerra angelical, e não há indícios da presença humana. O
profeta está completamente alheio a essa batalha, seu papel é outro.
Os promotores da doutrina dos espíritos territoriais
costumam também citar a passagem do endemoninhado gadareno (Mc 5.10), quando o demônio,
porta-voz da legião, "rogava muito que os não enviassem para fora daquela
província". Isso parece demonstrar, à primeira vista, que os promotores do
tal ensino estão certos. Mas o texto deve ser interpretado à luz do contexto. A
passagem paralela mostra que tal pedido aconteceu porque Jesus havia mandado
tais espíritos para o abismo: "E rogavam-lhe que não os mandasse para o
abismo", Lc
8.31. Por isso, pediram para ficar na região. Não se trata, portanto, de
espíritos territoriais. Essas inovações são perturbadoras e destoam
completamente do pensamento do Novo Testamento.
Na balança
Colocando na balança os erros e acertos da Teologia da Batalha
Espiritual pregada em nossos dias, muito pouco se tem de positivo. A maior
parte é praticamente neutralizada pelos seus malefícios. O incentivo à oração e
à dependência divina é um ótimo estímulo ao cristão. Mas, o povo de Deus está
habitado à oração sem essas inovações da batalha espiritual.
À luz da Bíblia, essa teologia é falsa e perniciosa e vem trazendo muita
confusão nas igrejas. Outro problema sério: a tal teologia fascina os evangélicos
de maneira assustadora, mas que qualquer outro assunto teológico. Os livros
nessa área, sobre reavivamentos satânicos, sobre experiências satânicas, de
testemunhos e visões sobre o reino das trevas, são campeões de vendas, cuja
leitura não recomendo, pois em nada edifica o corpo de Cristo.
Nota
1 HAMMOND, Frank e Ida Mãe. Porcos na Sala, Editorial Unilit, S.
Paulo, 1973, 132.
2 Romeiro, Paulo. Evangélicos em Crise, Editora Mundo Cristão, S. Paulo, 1995, p.
125.